Certa vez, estava lendo uma matéria em uma revista especializada em cinema sobre a quantidade de remakes que Hollywood produziu em um ano. Se não me falha a memória, dentre os mais de 300 filmes produzidos nos Estados Unidos anualmente, mais de 20% da safra 2005 eram uma nova versão de um filme mais antigo. E se for colocar a conta no papel, é absurdo constatar que mais de 60 filmes não eram nada mais que atualizações de histórias já contadas – sim, provavelmente alguns eram bons, mas mesmo assim. Não lembro especificamente os números, mas o título da matéria era chamativo e assustador demais para me esquecer: “O futuro do cinema será os remakes?” Se na época eu havia ficado com o peso da dúvida sobre as costas, hoje respondo tranquilamente um sonoro “não”. Fato é que praticamente todos os assuntos já foram explorados em filmes anteriores, o que diferencia um de outro não é exatamente o tema, mas diversos aspectos que conduzem e abordam determinado tema dentro da história.
Foi pensando nisso que inauguro essa nova série no blog. O “Filmes em Diálogo” propõe a discussão / confronto de duas produções cinematográficas que se relacionam sejam pela natureza temática ou pelas similaridades, coincidências, curiosidades, inspirações etc. A tarefa é analisar e estabelecer uma comunicação direta com projetos distintos, mas que dividam uma (ou mais) característica(s) em comum, abrangendo o horizonte de outras referências que podem ser inclusas a fim de tornar um material mais completo.
Para estrear essa nova seção do Pós-première, selecionei dois diretores talentosos em dois grandes filmes referenciais a um tema polêmico, o bullying. O experimentalismo de “Elefante” e seu retrato sóbrio de um episódio trágico (e verídico) chocaram o público do Festival de Cannes, de onde saiu com a Palma de Ouro, e ainda com a láurea de Melhor Diretor para o norte-americano Gus van Sant – o único que havia recebido tal honraria no histórico do Festival, até então, fora Joel Coen, em 1992, por “Barton Fink – Delírios de Hollywood”. O filme acompanha um dia comum em uma escola, onde são apresentados vários estudantes e a “tribo” a qual pertence – pode soar cliché, mas é como as coisas realmente são. Temos o garoto aplicado, as patricinhas bulímicas, a nerd solitária, o esportista pegador, a garota descolada etc. Eu sempre considerei a escola um dos ambientes mais difíceis de se (sobre)viver. É um campo de guerra declarado, em que a pessoa é obrigada a conviver com um(a) babaca entre quatro paredes por ter a infelicidade de ter caído na mesma sala do(a) infeliz. Mas aturar um ano como plateia de um palhaço é pedir demais, tem horas que não tem onde colocar a raiva. Isso sem falar naqueles que se julgam superiores e maltratam os demais por puro prazer / inveja. Enfim, isso não é exclusivo ao Ensino Fundamental e Médio, mas desde o pré, onde as crianças, ainda imbuídas da essência da maldade, já praticam bullying contra outros pequenos. Em “Elefante”, a situação chega ao extremo, a ponto de adolescentes se vingarem fatalmente dos zoadores.
No pouco conhecido “Pacto Maldito” (maldito é esse título brasileiro!), o diretor e roteirista Jacob Aaron Estes também constrói um filme baseado na vingança de um garoto que apanhou na escola e chama o irmão mais velho e os amigos para pregarem uma peça no outro garoto. Quando a pergunta “Se você pudesse estalar os dedos para ele cair morto agora, você o faria?” é lançada por crianças encantadoramente infantis e saudáveis, já pressentimos que a “brincadeira” não vai ser conforme planejada. E bingo! Infelizmente, o episódio acaba em uma fatalidade inesperada e o praticante do bullying acaba sendo outra pessoa, num sensacional twist do diretor, que até o espectador se torna cúmplice de tal tragédia – perguntamo-nos “foi merecido ou não?”. “Pacto Maldito” tem o poder de absorver o espectador completamente pra dentro da história curta e simples e ainda desafia o posicionamento de quem assiste.
São inúmeros filmes que retratam o bullying no cinema – “Bang Bang! Você Morreu”, “Preciosa – Uma História de Esperança”, “Carrie – A Estranha”, “Deixa Ela Entrar”, “Kes”, "Tiros em Columbine", o clássico da Sessão da Tarde “Te Pego Lá Fora”, uma infinidade –, e antes de prosseguir com a análise, devo justificar a minha escolha. “Elefante” e “Pacto Maldito” possuem vários pontos em comum, por exemplo, se passam em apenas um dia e o foco da trama reside na vingança das vítimas do abuso. Porém, escolhi esses dois filmes principalmente porque a direção de van Sant e Estes criam um grau de tensão gradativo durante o filme que considero praticamente impossível o espectador se sentir protegido. Em “Elefante”, somos sabotados pela câmera embaçada do diretor, que impede a nossa visão além do primeiro plano; os arredores são desfocados propositalmente e isso provoca muito desconforto, pois nossa visão acaba sendo limitada e nossa percepção não vai muito além da superficialidade. No decorrer do filme, percebemos que essa opção é triunfante e um exercício estilístico fascinante provocado pelo diretor para manipular o tempo. Estes – que faz sua estreia em longas-metragens com esse filme – se revela um grande estudioso do cinema. Mesmo sem maiores pretensões como van Sant, é extremamente bem sucedido no controle que detém sobre a trama, tornando o espectador refém de qualquer situação que possa saltar à tela – sem contar na direção de elenco que é sensacional, isso porque o filme também reúne 6 jovens atores fabulosos em seus papéis. Seria injusto se não citasse seus nomes: Rory Culkin, Scott Mechlowicz, Trevor Morgan, Ryan Kelley e os grandes destaques, Josh Peck e a pequena Carly Schroeder (Deus, como se parece com a jovem Catherine Deneuve!).
Outros filmes que retratam o tema bullying: "Kes" (1969); "Carrie, a Estranha" (1976); "Tiros em Columbine" (2002) e "Bang Bang! Você Morreu" (2003)
São dois filmes instigantes e que fogem completamente da história mastigada com final redentor. É pessimista, é brutal, tanto o desfecho de “Elefante” quanto de “Pacto Maldito” provocam um nó cego na garganta do espectador. Até que ponto a repressão juvenil pode habilitar sentimentos tão profundos de ódio e desprezo por outra pessoa a ponto de trucidá-la ou simplesmente fazê-la passar por alguma situação embaraçosa? A paranóia norte-americana fomentada pela mídia sensacionalista e os jogos de videogames violentos – instrumento comum nos dois filmes – são fatores que podem “explicar” essa questão tão complexa, mas eu não vou bancar o psicólogo porque não me convém. O que queria dizer é que tanto “Elefante” quanto “Pacto Maldito” são dois grandiosos filmes sobre esse tema tão espinhoso e, infelizmente, encontrado nas escolas com facilidade. E não sejamos hipócritas, eu aposto que todos têm alguma lembrança dolorosa e vergonhosa de ter maltratado alguém na infância.
11 comentários:
Priemiramente, parabéns. É com imenso apetite que recebo essa novidade aqui no pós.Premiére. Acho esse tipo de debate proposto pela seção, além de válido, entusiasmante.
E o tema da primeira seção não poderia ser mais desafiador. Os filmes selecionados são ótimos e você cercou-os muito bem.
De todos os outros filmes citados que abordam o bullying ainda não vi Kes.
Parabéns pela nova seção. Super bem vinda.
abs
Definitivamente, é um assunto sempre em discussão ... e quase sempre com opniões divergentes, dos filmes citados vi ELEFANTE e gosto muito, é a obra-prima de Gus Van Sant, tratado de forma lenta, porém grandiosa cuida de cada personagem e suas frustrações de forma precisa.
parabéns pelo texto, ótimo. Infelizmente não vi o Pacto maldito, Elefante é para mim o melhor filme do Guns Van Sant, um diretor que considero superestimado.
Seu texto é super coerente, pois mesmo não tendo visto o Pacto maldito, já vi os outros que você citou.
abraço
Ótima ideia de post.
Fiquei interessado pelo Mean Creek...
Quando comecei a ler já pensei em Tiros e Columbine e Deixe Ela Entrar, mas você já fez a associação tb!
Elton parabéns pela nova seção no blog, ficou muito bom e bem feita.
Uma pena que ainda não conferi Elefante e Pacto Maldito, mas vou correr atrás!
Ótimo texto!!!
Oi Elton,
Quero parabenizá-lo pela iniciativa da nova seção e reforçar o quanto te acho um dos melhores críticos de cinema na blogosfera. Vc é bom, talvez você não tenha percebido o seu potencial para esta área, mas estou aqui para te afirmar isso.
Com relação a comparação entre os filmes, é por aí mesmo, e gostei da forma como você falou do recurso da câmera em elefante, bastante experimental. Por ela não mostrar nitidamente o que eu queremos ver, ela se torna muito pertubadora e a situação dramática cresce junto com nós nesta escola fria cujos alunos são desprovidos de educação.
Concordo com vc sobre a questão da escola ser um ambiente bem cruel. Eu acho que é um dos ambientes masi cruéis do mundo, é difícil lidar com o pouco caso do adolescente imaturo.
abs!
E ai Elton? blz?
Legal essa interação dos dois filmes, gostei de Elefante, mas não vi o outro.
Legal seu blog! Mas vc poderia mudar o fundo preto, ele é ótimo para fotos, mas como seu blog é mais texto, incomoda a leitura.
Também não vi o Pacto Sinistro, mas pelo que voce falou parece ser um ótimo filme, acho Elefante sensacional, ao mesmo tempo que tem uma história forte e cenas mais fortes ainda, o filme consegue tocar pela leveza dos personagens, principalmente no final!
Parabens pelo texto!
Fala Elton!
Cara, muito interessante o texto, muito bom de se ler. Também relacionei a juventude no meu ultimo texto, mas foi sobre "Kick-Ass". Assisti Elefante por esses dias e concordo com todas as observações, pois eu havia notado mais a parte técnica do filme, achando mais um exercício de estilo modesto, até chegar a parte abstrata, que é aquele final arrebatador. Não vi o outro filme, mas está anotado.
Lamento a minha ausencia na visita do seu blog, mas venho sempre que posso.
Grande abraço!E bom frio por ae!..hehe!
Ótima idéia Elton!
Uma seleção digna de filmes referente ao tema.
'Elefante' é o mais perfeito desta lista, embra eu tenha gostado do trabalho do Larry Clark no filme 'Bully' com Brad Renfro - muito mais nu e cru!
'Preciosa' traz uma nova perspectiva deste tipo de violência.
Mas eu me rendo ai terror teen 'Carrie' do De Palma. Um clássico e que começou a gerar debates sobre o tema. A cena da festa é um deleite, rs!
Ficou ótimo mesmo!
Abs,
Rodrigo
Valeu, Reinaldo! Muito bom contar com você. "Kes" é dirigido pelo Ken Loach, foi um dos primeiros filmes desse diretor, assisti em uma mostra de cinema. Vale muito a pena!
Cleber: eu acho dificílima a tarefa de abordar um tema tão espinhoso como o bullying sem soar manipulativo. Ambos os filmes o fazem, e tira o fôlego do espectador à medida que avança se, para isso, apelar para cenas mais "tensas" e tal, pois a tensão está constante ali. Tudo isso por conta de diretores talentosos que conseguem conduzir seus filmes.
Obrigado, Vitor. Valeu mesmo! Gus van Sant fez grandes obras, talvez "Elefante" seja mesmo a melhor delas, mas o cara fez o remake de "Psicose" e isso eu não esquecerei ja-mais rs.
Bruno: recomendo altamente "Mean Creek". Sensacional! O mesmo adjetivo se aplica a "Deixe Ela Entrar" e "Tiros em Columbine", que vc citou.
Valeu, Alan! Assista, você não irá se arrepender.
MaDame, poxa, muito obrigado pelo elogio. Saiba que acho o mesmo de você, gosto muito de conferir suas análises profundas sobre os filmes. E o ambiente escolar realmente é um inferno, ainda bem que já me livrei disso rs.
Museu de Cinema: valeu pelo toque, cara! Pretendo fazer uma alteração no layout do blog futuramente. =)
Saulo S.: o filme se chama "Pacto Maldito", mas "Pacto Sinistro" do Hitchcock também é um filmaço rs. Concordo com tudo o que disse sobre "Elefante". Valeu pelo comentário!
Hey Alyson, bom te ver de volta, cara. Entendo como é conciliar com faculdade etc e tal, mas apareça quando puder. Pois é, o frio chegou um pouco atrasado, mas estou aproveitando como posso rs. Inverno rules!
Rodrigo, desconheço esse "Bully". Passou batido por mim esse filme, até peço desulpas pela desatenção rs, mas já está anotado. "Carrie" é um clássico sensacional, um dos melhores trabalhos da carreira de DePalma, sem dúvidas.
ABS!
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