Se nos submetermos a contabilizar a quantidade de filmes, só da década passada, ambientados em cenários de guerras verídicas ou que lidam com o assunto, certamente levaria um bom tempo para enumerar todos e chegar a um resultado final. Ainda mais trabalhoso seria separar esse emaranhado de produções de acordo com o combate que é relatado pela história, já que o acervo de guerras e confrontos que a História dispõe é imenso e, desta forma, os roteiristas têm maior liberdade para desenvolverem suas tramas baseadas no conflito que julgarem mais conveniente. Não restam dúvidas, no entanto, de que a 2ª Guerra Mundial ainda é a batalha mais reproduzida no cinema, originando obras inesquecíveis, tais quais “O Pianista” e “Bastardos Inglórios”, mas também mediocridades aberrantes como “Olga” e “Pearl Harbor”. Em 2003, com o interesse político-econômico camuflado pela “ânsia de vingança”, o débil ex-presidente norte-americano George W. Bush, com apoio estrangeiro, financiou a invasão dos EUA no Oriente Médio, e a ambiciosa Guerra do Iraque também passou a ser mote de alguns roteiristas de cinema. Filmes como “No Vale das Sombras”, “A Volta dos Bravos”, “Zona Verde”, o oscarizado “Guerra ao Terror” e o ainda inédito no Brasil “Redacted”, de Brian De Palma, são alguns exemplos. “O Mensageiro”, lançado em novembro do ano passado, foi o último filme da década a retratar o recente episódio; e mesmo que a Guerra do Iraque seja seu ponto de partida, a mensagem que “O Mensageiro” leva ao público é abrangente a qualquer tipo de guerra física.
Após ser condecorado como herói de guerra por ter salvado alguns soldados em pleno campo de batalha, o jovem sargento Will Montgomery (Foster) retorna para a terra pátria. Ainda resta a Will três meses como servidor do Exército e a função que irá assumir logo é vista com rejeição pelo próprio. Sua nova missão é levar a triste notícia de falecimento às famílias dos soldados que estavam em território inimigo. Ao lado do exigente capitão Tony Stone (Harrelson), eles formam o “esquadrão dos anjos da morte”, como Stone define o “serviço sagrado” que prestam aos familiares das vítimas. Em uma dessas visitas, Will conhece a viúva Olivia (Morton) e, desobedecendo às regras desse serviço específico, acaba se aproximando da mulher.
A história desenvolvida pelos roteiristas Oren Moverman e Alessandro Camon é simples, sem se preocupar em apresentar surpresas ou cenas-chave que possam resumir o projeto – embora haja duas que merecem ser discutidas adiante. Apesar da simplicidade do argumento, o realismo evocado pelo roteiro bruto e sem rodeios é um dos maiores atrativos do filme e o que torna “O Mensageiro” uma experiência tão emocionalmente próxima do espectador. A indiferença de quem assiste se dissipa a cada visita que os militares fazem à casa dos familiares, cujos filhos, pais, maridos são mortos em nome dos Estados Unidos da América. O patriotismo de ninguém é mais forte do que a perda de um membro da família, e mesmo que o sentimento de conformação do trágico episódio seja “atingido” mais tarde, é a dor do desespero incontrolável que sempre aflora diante das notificações. O exemplo perfeito é a cena em que o pai interpretado por Steve Buscemi (ótimo) recebe a notícia de que o filho de 22 anos foi morto no Iraque. Empossado de ódio que precisa ser extravasado, o homem chega a agredir um dos profissionais do Exército, mas, dias depois, ao encontrar um deles caminhando pela rua, se desculpa por tal comportamento.
A propósito, na maioria das cenas em que os soldados noticiam os familiares, percebe-se que a câmera fica instável no ambiente, mas jamais perde o foco do protagonista, já que uma das sacadas do roteiro é trabalhar o psicológico de Will pouco tempo depois de voltar do Iraque e suas alterações ao ter “contato humano” novamente. Se antes, o rapaz se escondia em roupas pretas, ouvia heavy metal trancado no quarto durante a madrugada – o ritmo frenético da guerra ainda era pulsante – e não fazia questão de esconder seu descaso e antissocialidade, o convívio diário com situações dolorosas e naturalmente humanas desperta no jovem a disposição de criar laços afetivos com outrem. Esse desejo justifica a aproximação que Will faz da personagem Olivia, interpretada por Samantha Morton com economia e talento. E essas singelezas do roteiro justificam sua consagração no Festival de Berlim, de onde saiu com o prêmio de Melhor Roteiro e a lembrança no Oscar na categoria de Melhor Roteiro Original – que, curiosamente, foi derrotado por um filme o qual dialoga tematicamente, “Guerra ao Terror”.
Por falar em Oscar, o desempenho do ator Woody Harrelson como o carrancudo e divertido Tony Stone foi lembrado pelos votantes da Academia. E não é pra menos. Desperdiçado ultimamente no cinema com personagens aquém de seu talento, Harrelson está confortável e exala naturalidade ao encarnar o capitão em suas diferentes nuances, destacando-se na fabulosa cena perto do final em que discutem sentados em um sofá. Ainda assim, o grande destaque de “O Mensageiro” fica com a atuação poderosa e desconcertante do ator Ben Foster, que se revela uma grande promessa do cinema. Sua dedicação e cautela em construir o psicológico abalado de Will, bem como sua “redenção” são dignas de aplausos, já que o ator não trai a origem de seu personagem e sai ileso em evidenciar as diferenças dessa jornada introspectiva, exigente e delicada. Sem dúvidas, uma das melhores performances masculinas do ano.
O diretor estreante Oren Moverman realizou um ótimo trabalho atrás das câmeras. Utilizando a câmera de mão, trêmula e inquietante nas cenas pertinentes, ele é hábil em transformar o espectador em meros voyeurs das situações que explodem na tela, sejam elas de sofrimento ou de embaraço, como no momento em que Foster e Morton dividem um silêncio sepulcral na cozinha. E ainda, algumas cenas que, embora possam passar despercebidas, são carregadas de interpretações. Pra mim, a mais expressiva é quando os dois militares, após saírem de um bar, começam a brincar de policial e bandido no estacionamento do local. Aparentemente boba, é uma ótima demonstração de como os ex-soldados podem externalizar a adrenalina diária de quem já esteve em área de combate.
“O Mensageiro” é um filme sensível, original e eficiente, que, embora tenha pequenos deslizes, representa um ótimo estudo de personagem e introduz uma discussão atual pertinente sobre uma guerra que, dizem, está com os dias contados. Bom, ao menos, eu fico um pouco mais aliviado por saber que a decisão está nas mãos do atual vencedor do Prêmio Nobel da Paz. Mas...será que isso quer dizer alguma coisa?
NOTA: 8,5
O MENSAGEIRO (The Messenger) EUA, 2009
Direção: Oren Moverman
Roteiro: Oren Moverman e Alessandro Camon
Elenco: Ben Foster, Woody Harrelson, Samantha Morton e Steve Buscemi
7 comentários:
Mais uma sensacional crítica para o portfólio. Concordo completamente com sua avaliação e pontifico, ainda, que Foster tal qual o filme mereciam indicações ao Oscar.
Gostei da sutileza sobre a cena em que brincam de policial e bandido. Havia me escapado. Que bom que não fugiu ao teu olhar. Essa é a função da crítica. Ampliar o sentido do filme. Problematizá-lo e debatê-lo com o leitor. Algo que vc faz com extrema destreza Elton.
Só para constar, esse é um dos melhores filmes que estrearam em 2010 em salas brasileiras.
abs
Filmezinho mediano,mt mediano...cheio de boas intenções,mas perdidíssimo no seu desenvolvimento,a despeito das belas atuações de Ben Foster,Woody Harrelson e Samantha Morton.
Este filme é simplesmente maravilhoso. Foi uma agradável surpresa para mim! Acho que ele mostra um lado diferente da guerra. Por isso, conta com um grande trunfo, além do excelente roteiro: as performances do elenco. Todos estão muito bem!
Parabéns pela crítica!!
Elton, mesmo que proponha a mesma reflexão de sempre, Moverman merece pontos por fazê-lo sem mostrar uma única cena de batalha. Roteiro sutil e direção corajosa, como na longa cena de cozinha. Harrelson e Foster (que já merecia mais reconhecimento) estão ótimos.
Ah, gostei muito do seu blog, vou te colocar no blogroll.
Faz tempo que quero ver este e agora minha vontade aumentou.
Gosto muito do Foster e do Harrelson.
Reinaldo: poxa, valeu pelo comentário, Reinaldo! Fico feliz que tenha aprovado a resenha. Também acho que Ben Foster merecia uma indicação ao Oscar, resta-me ver 2 ainda, mas com certeza sua performance está acima dos demais que vi (Firth, Clooney e Renner, todos ótimos tbm). E também faço coro ao que tu disse: um dos melhores filmes do ano até então =)
Chico: ahhh, como assim? rs. Achei o roteiro muito bem desenvolvido, embora tenha achado um pouco forçado estabelecer um romance entre Foster e Morton e outros pequenos deslizes. Mas, em suma, eu achei um filme muito acima da média.
Kamila: Obrigado pelo comentário, Kamila. "O Mensageiro" também me agradou bastante. Filmaço em todos os sentidos. E a guerra sob um ângulo diferente, acho a crítica a esse sistema bem singela, quase imperceptível, mas está lá.
Broadcastcinefilo: fui entrar no seu blog e a conta está fechada =/
anyway, valeu pela visita! Realmente, sem mostrar nenhuma cena de batalha, Moverman merece méritos, ainda que o filme não seja "de guerra".
Bruno: um dos melhores lançados em 2010 (nos cinemas brasileiros). Foster e Harrelson em uma parceria das melhores!
ABS!
Postar um comentário