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3 de mai. de 2010

Ilha do Medo


Alfred Hitchcock foi apelidado como o “Mestre do Suspense”, já que grande parte de sua filmografia de inquestionável qualidade é direcionada a filmes de espionagens e que envolvem um mistério a ser solucionado. O norte-americano George Romero é mundialmente conhecido como o “Rei dos Zumbis”, uma vez que o filme pelo qual ficou famoso foi o clássico de 1968, “A Noite dos Mortos-Vivos”, que elevou o “zumbi” a status de estrela ao ser figura constante nos filmes do diretor. O freak John Waters é usualmente citado como o “Príncipe do Vômito”, visto que bizarrices grotescas como “Pink Flamingos” ou “Desperate Living” são mesmo de revirar o estômago, além de Waters ser um dos grandes representantes do cinema trash. Outros cineastas não receberam um apelido definitivo, mas são geralmente referenciados quando se trata de um gênero em específico e seus desmembramentos, como o drama introspectivo e existencial de Ingmar Bergman; o engajamento político do grego Constantin Costa-Gavras ou o frescor das comédias adolescentes do recém-falecido John Hughes.


No entanto, há outros diretores que não se atém a um gênero definido, tentam beber de todas as fontes e emprestam a versatilidade como bússolas para suas carreiras. O lendário Stanley Kubrick, por exemplo, já fez do terror à ficção científica. Outro cineasta destacável nesse quesito é Martin Scorsese, cujos projetos transitam entre os épicos (“A Última Tentação de Cristo”, “Kundun”); comédias (“Depois das Horas”, “O Rei da Comédia”); dramas (“Alice Não Mora Mais Aqui”, “A Época da Inocência”), ação, com tendência mafiosa (“Cassino”, “Os Bons Companheiros”, “Os Infiltrados”); cinebiografias (“O Aviador” e “Touro Indomável”); musical (“New York, New York”) e se arriscou até no campo dos documentários musicais, conduzindo projetos como “The Last Waltz” e filmes sobre bandas e cantores de grande representatividade no cenário musical, como The Rolling Stones (“Shine a Light”) e Bob Dylan (“No Direction Home”). Mais uma prova da multifacetagem de Scorsese é o seu último projeto, “Ilha do Medo”, um suspense claustrofóbico, cuja única familiaridade presente no histórico do diretor é com o thriller “Cabo do Medo”, de 1991.

Baseado no livro do grande Dennis Lehane – que já teve todos os seus 3 livros adaptados para o cinema –, “Ilha do Medo” se passa em 1954 e acompanha as investigações do detetive Teddy Daniels (DiCaprio) e seu novo parceiro Chuck (Ruffalo) em uma instituição psiquiátrica, após a fuga de uma paciente consideravelmente perigosa. Localizado em Boston, mas distante da cidade, o hospício é construído em uma ilha de grande dimensão, chamada Shutter Island.

Em certo momento do filme, quando um dos seguranças da instituição apresenta o local aos investigadores, um deles ironiza “Falando assim, até parece que a loucura é contagiosa”. O roteiro escrito por Laeta Kalogridis sempre confronta o espectador a tentar solucionar o mistério envolto naquele espaço, provocando um verdadeiro exercício de adivinhações, que comprova que a afirmação dita pelo personagem do filme é capaz de ultrapassar a telona e atingir os espectadores. “Ilha do Medo” prende a atenção do público desde o início, apresentando, no decorrer do filme, as peças que devem ser encaixadas para concluir o desafiador quebra-cabeça. Exposto de perto à irracionalidade daqueles pacientes, o policial interpretado por DiCaprio começa a questionar a própria sanidade, quando déjà vus e alucinações começam a atormentá-lo com maior frequência, frutos de seu passado trágico – a mulher foi morta em um incêndio e as constantes lembranças dos assassinados nos campos de concentração nazistas, que presenciou enquanto lutava na Segunda Guerra Mundial.

Quando passamos a testemunhar os devaneios do protagonista e seus intensos pesadelos, o espectador é imerso em um mar de possibilidades e, por mais que muitos acusem o filme de ser previsível, o bombardeio de suscitações é inevitável, já que algumas cenas anulam as demais – um ponto destacável no roteiro de Kalogridis, que é auxiliado pelo brilhante trabalho de edição de Thelma Schoonmaker, parceira habitual do diretor. No entanto, o roteiro sofre por apresentar situações relativamente inverossímeis, que acabam esbarrando na “loucura” como única explicação/ desculpa para as algumas ações pouco críveis, como a cena em que Teddy escala um penhasco ou no momento em que invade um dos compartimentos do hospício. Outro fator que pode incomodar algumas pessoas é o cliché terrível de acordar de um pesadelo e saltar instintivamente da cama, e isso acontece repetidas vezes no filme.


Revelando um fascinante exercício de estilo, a condução de Martin Scorsese é um deleite à parte. Recheado de cenas bem arquitetadas, como o fabuloso travelling que acompanha os investigadores chegando à instituição médica ou os closes angustiantes da “fonte de ratos”, o filme ganha contornos adicionais que enriquecem a narrativa, alimentando uma atmosfera que talvez seja até mais importante do que a própria história que conta – aliás, é abissal a diferente percepção atribuída ao filme no início e no desfecho. Se já não bastasse, “Ilha do Medo” é esteticamente primoroso. Os diferentes ambientes e situações requerem variedades de iluminações. Desde os tons mais amarelados que envolvem os delírios do protagonista até a dureza do cinza, representada nas cenas mergulhadas em névoa ou nos aflitivos momentos que as batalhas da Segunda Guerra Mundial são relembradas, a fotografia representa grande valor ao entendimento das passagens narrativas, e sua alteração é orquestrada com maestria pelo diretor de fotografia Robert Richardson – também, parceiro habitual do Scorsese.

“Ilha do Medo” ainda é beneficiado por um elenco estelar. Ben Kingsley interpreta o diretor da instituição com a dubiedade oportuna para o personagem, que se revela um homem que calcula meticulosamente cada gesto antes de torná-lo prático; o promissor Mark Ruffalo encarna um sujeito maleável e simpático com naturalidade, representando o braço direito do protagonista; já as jovens talentosas Michelle Williams e Emily Mortmer se revelam eficazes com o pouco tempo que têm em cena, ao passo que somos presenteados com as curtas, porém fantásticas, contribuições do veterano Max Von Sydow em um diálogo revelador (“Você possui métodos de defesa impressionantes”) e da sempre competente Patricia Clarkson. Porém, na quarta parceria com Scorsese, Leonardo DiCaprio é o grande destaque no campo das atuações, interpretando um personagem difícil e extremamente complexo (e complexado), o ator se entrega totalmente ao papel, que indica possivelmente a sua melhor performance no cinema até agora – e isso não é pouca coisa.

Para alguns foi um tanto surpreendente, para outros pecou pela obviedade, mas fato é que “Ilha do Medo” garante momentos de tensão que, independente de sua resolução, é uma experiência instigante e desafiadora. Muito compensador ser levado por um filme dessa maneira.


NOTA: 8,0


ILHA DO MEDO (Shutter Island) EUA, 2010
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Laeta Kalogridis
Elenco: Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley, Michelle Williams, Max Von Sydow, Emily Mortmer e Patricia Clarkson

13 comentários:

Karen Faccin disse...

"Ilha do Medo" foi exatamente o que você citou na última frase, simplesmente me "levou".
Ao mesmo tempo que queria assistir o filme com olhos clínicos, buscando encontrar a "obviedade" [já alertada anteriormente, rs], não pude conter minha sanidade e, não surpreendentemente, a loucura me contagiou.

Durante a exibição fui arrebatada por milhares de possibilidades que, de repente, caíam todas por terra. Confesso que não dei conta de toda meticulosidade de Scorsese, assim, de primeira. Semanas depois de assistir ao filme, ainda me pego pensando em algumas cenas e por impulso vou tentando desconstuí-las. Por fim, só posso chegar a uma conclusão: Di Caprio [MARAVILHOSO!] e toda essa atmosfera extasiante e intrigante merece ser reassistida!


P.S. Baby, o texto, como de praxe, está um primor! :****:

Francisco Brito disse...

Bom trabalho de Scorsese,o roteiro falha na construção da ambiguidade("O Inquilino" e "O Bebê de Rosemary",filmes cujos roteiros tem como grandes trunfos a sufocante atmosfera de ambiguidade,só pra entrar no terreno das inevitáveis comparações,alcançam resultados superiores),mas a direção é realmente fantástica.

DiCaprio extraordinário,ao lado de um fabuloso elenco de coadjuvantes(é sempre um deleite ver um ator do porte de Max von Sydow em cena).

Reinaldo Glioche disse...

você não pode ver, mas estou aqui batendo palmas para vc. PUTA crítica. Sensacional. Vc cobriu todos os aspectos do filme e de brinde ainda contextualizou teu leitor sobre a cinematografia ampla de Scorsese. Tua critica é quase tão boa quanto filme, pq convenhamos: emular Scorsese não é fácil. Nem mesmo quando se fala do mesmo.

Grande abraço!

Alyson Santos disse...

Eu também reparo a qualidade de um diretor principalmente quando ele passeia por vários gêneros e consegue no minimo um bom resultado. Cito também, além dos citados por vc, o coreano Chan Wook Park (Do terror "Thirst" até o romance "I'm Cyborg, but that's ok). E tento assemelhar a maneira que Scorsese dirigiu "Ilha do Medo" como uma distinção entre poema (estrutura) e poesia (conteúdo), porém é através do poema (a câmera) que ele poetisa e nos entrega momentos de puro exercicio de estilo e o roteiro, mesmo que óbvio, completamente seguro, denso e que segue uma linha sem voltas extraordinárias e já é o suficiente. É um ótimo filme, realmente. Também dou a mesma nota.


P. S: Velho, cheguei em Maringá em 2006 e fiz o segundo, terceiro e um pouco do cursinho ae também! Então acho que não estudamos juntos no primeiro não, mas se for foi no segundo, mas não lembro de você O.o rsrs!

Ah! E eu lembro da Karen sim, po, se for a mesma que estou pensando: Ela tem o cabelo moreno, longo e liso?

Po, beleza, quando eu for ae dou um toque sim. Nenhum dos meus amigos curte tanto cinema quanto eu..ahuah' E mando a Mono pra você sim, mas estará pronta só o ano que vem, mas ja comecei ;D

Abraços, tbm te linko.

Santiago. disse...

Oi Elton,

você já sabe qual é a minha opinião sobre Ilha do Medo. Inclusive, ela é muito próxima da sua. Agora duas coisas, você diz que é bastante revelador o diálogo onde é dito “Você possui métodos de defesa impressionantes”, realmente é, só que só fez sentido para mim depois do desfecho do longa. De fato, eu pensei que havia algo de obscuro acontecendo na Ilha, e que os médicos fariam de tudo para ocultar.

E sobre a cena do penhasco, eu já não sabia mais o que pensar. Estava totalmente confuso.

Por isso tudo, só tenho uma coisa a dizer: Palmas para o Scorsese!

Abração!

Kamila disse...

Gosto da parte técnica do filme e da performance do Leonardo DiCaprio. Também acho que Martin Scorsese conseguiu ser feliz ao criar uma atmosfera de suspense. Entretanto, a previsibilidade do roteiro acaba com ele!

Wally disse...

Estive na parcela que se surpreendeu pelo final. A meu ver, a parcela sortuda.

Nota 8,5

Paulo Soares disse...

Com Ilha do Medo, mais uma vez o mestre Scorsa ratificou o seu status de gênio que adquiriu por sua brilhante construção cinematográfica. Um diretor como poucos, que está muito longe de demostrar sinais de cansaço.

Particulamente para mim, Ilha do Medo foi perfeito em TODOS os aspectos, tentei, revirei, vi 4 vezes no cine ( não resisto..rs) e não encontrei falhas. Sejam elas técnicas, de condução de roteiro, e muito menos na estupenda direção do Martin. Logo, para mim particulamente se tornou mais uma obra prima da sua extasiante filmografia.

Abraço Friendo!

Maurício Cunha disse...

Tom!!! Belo texto. Só senti falta de você não comentar a atuação do Jack Early Harley. Na minha opinião ele e Patricia Clarkson saõ os melhores coadjuvantes do filme.

Daniela Gomes disse...

Olá Elton,
eu saí da sessão de "Ilha do Medo" extasiada, maravilhada. Não senti nada de óbvio no final. Eu realmente mergulhei na trama e me deixei levar. Valeu a experiência. O filme, para mim, mereceu nota máxima.
Apesar de não concordar com a sua nota, gostei muito de sua crítica.
Abraços

Fernando disse...

Gosto muito de filmes assim: que desperta o público, fazendo-o ficar dividido, o que sempre gera muita discussão. Arrisco em dizer que é um dos três melhores filmes da temporada 2010 até agora.

Elton Telles disse...

Oi Karen!
Eu sei, sou testemunha ocular das suas reações no cinema. De fato, alguns acharam um pouco óbvio, mas o filme suscita tantas possibilidades que acredito que a minoria permaneceu apenas com uma desconfiança durante todo o filme. Valeu pelo seu comentário.


Dae Chico!
Sim, sim, também acho que o domínio em cena de Scorsese empalidece alguns deslizes do roteiro. Concordo quanto ao DiCaprio e o elenco fantástico!


Reinaldo, valeu, meu caro! Obrigado mesmo pelo seu comentário ;)


Dae Alyson, gostei da sua analogia do trabalho do Scorsese com o poema. Parece que tivemos a mesma impressão do filme. Quanto ao Chan-wook Park, é um diretor fantástico do cinema contemporâneo, mas não dei seu espaço devido porque ainda está engatinhando, mas a consultar seus filmes anteriores, parece que um nome irá se estabelecer no cinema coreano, que, diga-se de passagem, entrega grandes filmes na atualidade.


Olá, Santiago!
Seu comentário comprova o que eu disse na crítica: que o espectador também fica "louco" durante o filme. É uma viagem! E Scorsese, não canso de dizer, não merece palmas, mas ovações de horas =)


Kamila e Wally: mais duas provas de que alguns saíram frustrados pela previsibilidade, enquanto outros foram pegos totalmente de surpresa. Eu desconfiei, mas depois abandonei e criei outras teorias rs.


Paulo: QUATRO? 4 VEZES NO CINEMA? Que maravilha, hein! rs. O meu recorde de assistir ao mesmo filme no cinema tbm foram 4 vezes e, nessa situação, era "Os Incríveis", da Pixar rs. Scorsese é gênio! E fico feliz que você não tenha se decepcionado com ele. =D


Hey, Mau!
Valeu pelo seu comentário, cara. Pois é, esqueci de citar Jackie Earle Haley por pura falta de atenção, já que ele realmente faz uma parceria sensacional com DiCaprio na única cena em que aparece. Valeu pela lembrança! ;)


Olá, Daniela! Valeu pelo seu comentário. "Ilha do Medo" não ganhou nota máxima por conta de alguns deslizes do roteiro mesmo. Mas nem leve a nota TANTO em consideração ;)


Fernando [2].


ABS!

Cristiane Costa disse...

Oi Elton,
Tudo bem?
Sempre gosto de ler seu blog com todo o carinho pq você sempre me parece um aluno de Cinema, acredita? Não sei , sempre associo suas críticas com um cara que vai atrás de contexto e associações no Cinema e, pra um filme te agradar, sei que não é fácil rsrs!


Essa sua análise de Ilha do Medo só reforça o quão bom crítico tu és. Parabéns! Amo seus textos e adoro sua lucidez com relação aos aspectos técnicos e contextuais em cada resenha. Realmente concordo com os pontos abordados. Ilha do Medo é um filme que me incomodou no bom sentido, senti medo, tensão e até uma certa insanidade ao assistí-lo. Scorsese é mestre, ele soube entrar na minha mente.

abs!