Pages

12 de fev. de 2011

Cisne Negro


Se traçarmos um paralelo entre os quatro filmes anteriores que compõem a curta filmografia do diretor Darren Aronofsky e o seu último, “Cisne Negro”, é possível identificarmos alguns aspectos ressonantes ao núcleo principal desta obra. A obsessão doentia pelo matemático que entra em colapso mental no obscuro “Pi”; o vício deteriorante dos personagens infelizes que povoam o chocante “Réquiem para um Sonho”; a dedicação integral do cientista vivido por Hugh Jackman no belo “Fonte da Vida”; e a exposição do corpo aos sacrifícios que peleja “O Lutador” de Mickey Rourke para chegar à forma. Guardadas as devidas proporções, essas também são algumas submissões que a insegura personagem central de “Cisne Negro”, a jovem bailarina Nina Sayers (Portman) enfrenta – involuntariamente, em alguns casos – para consagrar uma performance nos palcos sem deixar vestígios de erros. O combustível que a move – e desloca Nina para um pesadelo extremo – é o objetivo de ser perfeita. Partindo de um conceito amplamente subjetivo e inalcançável em muitas ocasiões, Aronofsky mais uma vez localiza seus personagens em momentos de insanidade, submerge sua câmera no psicológico corrompido da protagonista e convida o espectador a um verdadeiro e fascinante espetáculo de horrores, fruto das loucuras comportamentais e dos delírios violentos antes sufocados por Nina, que no filme despertam e são externalizados pela garota com fúria absoluta.

Todos os sentimentos reprimidos pela jovem, seja por conta da rígida educação da mãe controladora ou talvez pelas próprias limitações que impunha a si mesma, ganham nova dimensão e se “materializam” em devaneios assombrosos que chegam a ponto de fundir-se com a realidade. E é justamente nessa amálgama de acontecimentos envolvendo o real atrelado à mente conturbada de Nina que “Cisne Negro” se revela um filme tão inspirado e entorpecedor. A estrutura do pensamento remete a David Lynch, sobretudo o ousado “Império dos Sonhos”, cuja protagonista vivida por Laura Dern é uma atriz que adota nova personalidade devido à concentração intensiva que dá à sua personagem no filme dentro do filme, o que não se difere muito daqui. Nina está tão concentrada em interpretar Odile, a irmã malvada do Cisne Branco e uma das personagens fundamentais da produção “O Lago dos Cisnes”, que a bailarina acaba ganhando características físicas da ave e agindo de maneira estranha, conforme o perfil sedutor e agressivo do tal Cisne Negro do título.

Além das tentativas de superar as próprias exigências, Nina se depara com três fatores externos que, vistos pela protagonista como uma ameaça para que ela atinja a perfeição, funcionam como um motor que intensifica seu quadro de loucura. Um deles, naturalmente, é o diretor artístico da produção, Thomas Leroy (Cassel, excelente), um profissional crítico e exigente, que vê potencial em Nina, mas reclama com frequência dos passos fundados no classicismo e no rigor estético matematicamente calculado da bailarina ao se apresentar, o que vai de encontro com a sensualidade e caráter explosivo do Cisne Negro. Dentro de casa, a figura da mãe opressora, em quem Nina se espelha inversamente, pois tendo sido também uma bailarina no passado, Erica (Hershey, espetacular) fracassou como dançarina e abandonou a carreira nos palcos para se dedicar à maternidade – aliás, há uma cena fabulosa que se transforma em uma luta de egos entre mãe e filha, quando uma se vê logo rebaixada, aponta a fragilidade da outra para se sobressair. E, por fim, a presença da bela e hedonista Lily (Kunis, de tirar o fôlego), uma das bailarinas da mesma companhia que ambiciona “roubar” o papel principal do espetáculo das mãos / asas de Nina.

A despeito de Winona Ryder, que se perde no overacting, o elenco de apoio é irretocável, exibindo um dinamismo em cena que impressiona. Grande contribuição, inclusive, se deve ao soberbo trabalho de Darren Aronofsky, finalmente sendo reconhecido pela competência que vem demonstrando há pouco mais de uma década – a tardia indicação ao Oscar de Melhor Diretor fala por si. Aronofsky é conhecido por extrair o máximo de seus atores, sendo não apenas habilidoso na condução da história, mas atencioso e detalhista ao explorar seu elenco. Porém, mais que isso, o diretor recusa a abordagem como simples testemunha, optando por mergulhar de cabeça – assim como sua protagonista – no mundo de balé, tanto em trazer o cotidiano das bailarinas para garantir mais autenticidade, como pela opção de transformar sua câmera em um mais um dançarino ao acompanhar os admiráveis movimentos de Nina, que atinge o ápice na sufocante e inesquecível sequência final, uma das mais acachapantes que conferi recentemente no cinema. Entregando uma mise em scène espetacular, Aronofsky ainda situa o espectador no inconsciente da bailarina, acompanhando todos os seus desequilíbrios sem perder o tom e ainda é feliz por provocar e permanecer uma constante sensação de mistério que acompanha o filme – como a opção de vários personagens surgindo de âmbitos escuros, mais uma referência a Lynch, e que o fotógrafo Matthew Libatique capta com perfeição.



Vale destacar a interessante relação do diretor com os espelhos que decoram diversos cômodos, tanto na casa, como na companhia de dança. A interpretação varia, porém observo que os reflexos anunciam significados mais densos que mereciam uma parte 2 da crítica para ser explicado. Essa preocupação com os detalhamentos só reforça a brilhante direção de Aronofsky, que vem a cada projeto se confirmando como um dos melhores de sua geração. E já falando nos espelhos, que, grosso modo, encaro um obstáculo que impede Nina de respirar e enxergar outro mundo a não ser o do balé, o design de produção de “Cisne Negro” oferece um trabalho genial, pois solidifica as ideias da história, como o realce das obsessões compartilhadas pela protagonista. Percebam a cena em que ela toma banho na banheira a presença de um quadro com dois patos brancos posicionado sobre sua cabeça, ou até mesmo em seu quarto, rodeado de ursos de pelúcias indicando sua meiguice, o momento em que decide seguir os conselhos de Thomas e se masturbar, um urso de cisne negro aparentemente a encarando como se reafirmasse “sweet girl”. Sem contar o porta-jóias com a bailarina e o toque do celular com a música-tema de Tchaikovsky, elementos que aprisionam a bailarina em um mundo do qual nem a própria parece ter intenções de sair – nem que isso a leve à autodestruição.

Abraçando as questões psicológicas e complexas da personagem com total convicção, Natalie Portman incendeia a tela com sua atuação visceral e de total entrega, em um dos melhores trabalhos de composição de personagem que vi neste ano. É fantástico perceber como a atriz incorpora toda a insegurança de Nina, mas se revela verdadeiramente assustadora em outras cenas, algumas vezes até no mesmo take, como a cena no camarim – sinto o frio na espinha só de lembrar. Isso sem falar no esforço físico de aprender as técnicas desse dificílimo esporte no intervalo de um ano – claro, com a ajuda de dublês, a via crúcis fica mais fácil, mas se Portman não aprendeu, devo confessar, que é ainda mais admirável por ter sido tão convincente.

Dessa forma, unindo dois trabalhos fabulosos e que encontraram a química perfeita, o sucesso de “Cisne Negro” e o reconhecimento na temporada de premiações – 5 míseras indicações ao Oscar, merecia mais... – se dá principalmente à catarse do diretor ao lado de sua atriz em estado de graça. Se ao final de “Bastardos Inglórios”, o diretor Quentin Tarantino reconhece que talvez esteja diante de sua obra-prima, a última fala de Natalie Portman em “Cisne Negro”, eu diria, não se limita apenas à personagem, mas também ao seu desempenho espetacular no filme. Quem viu, sabe.


NOTA: 9,5


CISNE NEGRO (Black Swan) EUA, 2010
Direção: Darren Aronofsky
Roteiro: Mark Heyman, Andrés Heinz e John McLaughlin
Elenco: Natalie Portman, Vincent Cassel, Mila Kunis, Barbara Hershey e Winona Ryder

16 comentários:

Rodrigo disse...

Meu Deus, que texto maravilhoso. Sério mesmo. As comparações com os filmes anteriores de Aronofsky, a discrição dos detalhes de cena e o que cada significa, etc... tudo é magnífico. A partir de agora irei seguir.

Cristiano Contreiras disse...

Ótimo texto, Elton!

Sinceramente, ainda estou sem palavras pra esse filme! Achei um trabalho grandioso, desde já meu favorito do Oscar. O filme é todo perfeito em suas esferas técnicas e, principalmente, interpretativa.

Natalie Portman é deusa aqui, expressa uma interpretação única. A maneira como sua personagem se desnuda, aos nossos olhos, é algo revelador...e a mão cuidadosa de Aronofsky ajuda, ao colocar a personagem aos nossos olhos e sentidos, com todas suas fragilidades e anseios, é assombroso.

O filme pulsa, é todo psicológico. Me arrepiei bastante. A cena em que Nina explode, visualmente e metaforicamente, seu "Cisne Negro" desde já é um momento clássico do cinema moderno.

Belo filme mesmo!
Vou ruminá-lo mais um pouco, depois escrevo (tento) algo...

Abs

Alan Raspante disse...

Já é um dos meus filmes favorito deste ano. Simplesmente incrível. Aronfsky mais uma vez provando ser exelente diretor e Portman se mostrando uma atriz e tanto!

Muuito bom!
[]s

Rodrigo Mendes disse...

Grande Elton! Ótimo as suas passagens nas obras anteriores de Aronofsky, vejo que Cisne Negro tem até mais semelhanças com PI.

É um deslumbre este filme e, em dúbio sentido. Ver a autodestruição de Nina e sua obsessão pela perfeição é algo extremamente aterrador. Perfeita na técnica da dança e imperfeita na relação com as pessoas, e sobretudo no sexo.

Forte, belo, assustador. Este filme é um máximo de todos até agora realizados por Darren Aronofsky.

Abs.
Rodrigo

ANTONIO NAHUD disse...

Fiquei decepcionado com esse filme. Espera mais. Vale por Natalie Portman.

www.ofalcaomaltes.blogspot.com

Gabi Drun disse...

"I felt perfect. I was perfect" O filme todo pra mim pareceu perfeito.

Victor disse...

FILMAÇO!!! O puro retrato da obsessão! Portman merece todos os elogios!

Reinaldo Glioche disse...

Quem viu sabe e sabe muito bem. Assim como vc. Bela crítica. Tb acho que Cisne negro merecia mais atenção no Oscar. Mas aí pesam dois fatores: 1 - É sombrio demais e 2 - Natalie Portman, d ealguma maneira, encapsula a fita...
abs

Anônimo disse...

Realmente quem viu sabe, ele terminou perfeito.

Alyson Santos disse...

Elton, seu filho da Mãe!!
Cara, tu leu minha mente! O meu texto ainda está em andamento e eu escrevi a mesma coisa, quando vc diz " como pela opção de transformar sua câmera em um mais um dançarino ao acompanhar os admiráveis movimentos de Nina" e eu também disse que a fala de Nina é a mesma de Daren, a conclusão do seu filme e que os aplausos duram até o fim dos nomes dos profissionais. E agora?! rs! Ahh, ja não sabia se ia dar continuidade ao texto, agora então...rs!

Muito boa sua analogia dessa personagem com os demais do diretor, em suas obras anteriores. Não havia reparado nisso. Sabia que mais uma vez o Aronofsky buscava o mais profundo da degradação de suas personas com seus desejos, mas não tinha feito essa ligação exata.

Abraço!

Mayara Bastos disse...

Belíssimo texto, tem todos os elementos que adimiro no filme, principalmente a direção do Aronofsky e a atuação da Natalie. Uma perfeição!

Beijos! ;)

Natalia disse...

Ótimo texto, Elton! Nao me atentei ao detalhe do espelho, creio que vou assistir de novo pra me antentar mais nestes detalhes.
Adorei o elenco, embora acho Kunis morninha demais. Já Winona Ryder fez uma atuação meio deprimente, rs. Cassel é sensacional (o que ele tem de feio tem de talentoso talvez). E Portman está perfeita.

Por mim, Cisne Negro venceria o Oscar...

Abs!

renatocinema disse...

Esse filme é muuuuito bom.

Merece o 9,5 com toda certeza.
Portman dá um show a parte.

Anônimo disse...

o melhor filme do ano

http://filme-do-dia.blogspot.com/

Rafael W. disse...

Uma obra-prima bela, e ao mesmo tempp, aterradora. Natalie Portman se supera, merece o Oscar!

http://cinelupinha.blogspot.com/

Paulo Soares disse...

Ótimo texto Friendo. Disse exatamente tudo que penso sobre o filme. Uma perfeição!

Aronofsky aqui entrega seu melhor trabalho na direção. Uma Mise-en-scène fantástica.

E Natalie? Então tá né.

Abs.