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31 de jan. de 2011

Inverno da Alma


Não é muito comum o cinema norte-americano mostrar com sinceridade as fraquezas sociais da América, como regiões de extrema indigência que aparentam ainda viver na Idade Média, considerando os hábitos e costumes das pessoas que povoam o local aliado à falta de prosperidade que estas sentem, vítimas do cenário precário o qual estão aprisionadas. O desbravamento de Wim Wenders em “Medo e Obsessão” (2004), por exemplo, chama a atenção para uma parte de Los Angeles devastada pela miséria e violência – e o cineasta alemão objetiva com sua investigação colocar em cheque o encantamento que muitos espectadores sentem em relação aos Estados Unidos, a famosa “terra dos sonhos”. Ambientado do outro lado do país, entre o Estado de Nova York e o Canadá, “Rio Congelado” (2008) é outra produção que não faz concessões em retratar as condições inóspitas dos personagens, que encontram na ilegalidade a solução mais fácil de substituir o almoço à base de pipoca e suco artificial por uma refeição decente. Outro interessante e corajoso filme que mergulha na pobreza e na ignorância dos personagens, emprestando uma região de penúria para contar sua história é o depressivo “Inverno da Alma”, o independente mais elogiado pela crítica em 2010. Além da relação com o espaço, os três filmes se dialogam por apresentarem heroínas nos papéis centrais, vividas de forma intensa e convincente por três atrizes notáveis do cinema americano atual: Michelle Williams, Melissa Leo e Jennifer Lawrence. E não é à toa que o trio está indicado ao Oscar este ano – as duas primeiras, claro, por outros trabalhos.

Situado nas Montanhas Ozark, região subdesenvolvida que compreende os Estados de Missouri e Arkansas, no sul dos EUA, o roteiro escrito pela também diretora Debra Granik em parceria com a sócia, Anne Rosellini, se desenvolve nos esforços de Ree (Lawrence), uma garota de 17 anos que abdica do sonho de ingressar o Exército para cuidar da mãe doente e de seus dois irmãos caçulas. Um dia, a jovem recebe a visita do xerife da região, informando-lhe que seu pai traficante de drogas pagou a fiança da prisão, mas alienou a casa e toda a madeira do território como garantia de sua liberdade; porém ele precisa comparecer ao tribunal nos dias seguintes, caso contrário, todas as posses da família ficarão sob a guarda da Polícia. Ree se encarrega de procurar o pai, mas a busca incessante se torna ameaçadora quando a garota se envolve com alguns membros da vizinhança, o que inclui seu tio violento, Teardrop (Hawkes).

Para facilitar a própria via crúcis que se anuncia, ela vai à propriedade de algumas pessoas para ajudá-la, e o roteiro se revela perspicaz e eficiente na apresentação dos personagens secundários, exibindo o perfil de cada figura infeliz que rodeia aquele ambiente atrasado, em um curto espaço de tempo. Sem auxílio e ainda levando desaforo pra casa, resta à protagonista a custosa missão de partir na jornada sozinha, entretanto, sem abandonar as responsabilidades que assume para sustentar sua família. E são nessas duas variações interligadas do enredo que o roteiro enxuto da dupla se desenvolve, abrindo espaço tanto para a beleza natural de algumas cenas, como quando ensina os irmãos a manusearem uma espingarda ou a esfolarem um esquilo para comerem, como outros momentos que envolvem situações violentas e dolorosamente insuportáveis. O grande mérito de Granik e Rosellini é manter o filme sobre um manto de imprevisibilidade, o que potencializa ainda mais a curiosidade do espectador diante do (chocante) desfecho da história.

Segundo trabalho nos cinemas de Debra Granik – o primeiro foi “Down to the Bone”, que impulsionou a carreira da atriz Vera Farmiga –, “Inverno da Alma” traduz uma concentração narrativa admirável. Não apenas em relação à história, mas no que concerne à delineação dos personagens, à importância de cada um e suas reações mediante ao que reúne todos naquele espaço: o sumiço do pai da garota. Sem querer apresentar provas concretas, Granik deixa a cargo do espectador a desconfiança e a crença do que julgar mais coerente para a resolução do caso; a dúvida é bastante incômoda, mas o realismo cruel de “Inverno da Alma” definitivamente não intenciona passar a mão na cabeça do espectador, e o gradativo tom de suspense estabelecido pela diretora confirma essa declarada “despreocupação” de afago.



Contando com um elenco de apoio predominante de rostos desconhecidos, John Hawkes deixa escapar ótimas nuances na sua caracterização como o tio ambíguo da protagonista, que mesmo se oferecendo disposto a protegê-la, não demonstra nenhum tipo de emoção com a sobrinha. Dale Dickley se beneficia pelo rosto marcado e se destaca como a vizinha fria e perigosa, uma mulher ignorante que recorre à violência física como principal método para resolver seus problemas. Chamo atenção para a curta, mas importante aparição de Sheryl Lee, a eterna Laura Palmer de “Twin Peaks”, que interpreta a amante do foragido. E, claro, resenhar “Inverno da Alma” sem comentar o tour de force de Jennifer Lawrence é o mesmo que escrever sobre “Psicose” e ignorar Hitchcock. Presenteada com uma personagem complexa e destemida, a semi-estreante imprime personalidade em um desempenho sóbrio e intenso. Entregando-se totalmente ao papel, a atriz não excede no sotaque sulista e interage com o ambiente sujo de maneira realista e sem espetacularizar nenhum movimento. Atuação contida de uma personagem robusta e bem definida, que lhe vale a atenção merecida que vem recebendo nas premiações, inclusive a recente candidatura ao Oscar de Melhor Atriz.

Além da nomeação para Lawrence, “Inverno da Alma” recebeu indicações para a atuação coadjuvante de Hawkes, para o roteiro adaptado do livro homônimo, de Daniel Woodrell, e Melhor Filme, representando a grande surpresa da categoria principal desta edição. E se frequentemente nas críticas eu lamento algumas traduções redutoras e estúpidas que muitas distribuidoras rebatizam os filmes estrangeiros no Brasil, também acho bacana reconhecer quando um título seja pertinente à obra. Além de lírico, “Inverno da Alma” se adequa perfeitamente ao coração petrificado em gelo e à inexistência de sangue nas veias da maioria daqueles corpos sem misericórdia, nem sentimentos. Uma grata surpresa.


NOTA: 7,5


INVERNO DA ALMA (Winter’s Bone) EUA, 2010
Direção: Debra Granik
Roteiro: Debra Granik e Anne Rosellini
Elenco: Jennifer Lawrence, John Hawkes, Dale Dickley, Lauren Sweetser e Garret Dillahunt

7 comentários:

Cristiano Contreiras disse...

Verdade seja dita, seu texto funciona muito mais que o próprio filme. Concordo que é interessante, mas no geral torna-se frágil e até mediano - bem verdade, caminhamos com a personagem de Lawrence que, de fato, tem uma atuação magistral. Mas, acho que o roteiro e até a direção não consegue trazer os personagens tão próximos de nós. Não é por conta da tal "alma" fria, é limitação mesmo da construção do estudo dos personagens ali...o filme, por vezes, parece não sair do mesmo lugar e somente o talento perfeito de Lawrence consegue provocar alguma atração com o que vemos.

Acho que a direção de Granik é muito, muito, correta...poderia ter ousado mais, acentuado mais, sei lá...não vejo esse grande filme como muitos acham, nem mesmo acho o desfecho 'chocante' como você falou. Na verdade, o final poderia ser mais delineado...e discordo da indicação ao Oscar de Hawkes e filme. Quem deveria ter sido indicado, no lugar dele, é Andrew Garfield por "A Rede Social". E "Blue Valentine" é um filme mais denso e instigante que este, ao meu ver. Este sim poderia ter recebido a indicação de Filme...

Bom, fico feliz em ver como Lawrence tem tido o reconhecimento, afinal é uma bela atriz. Gosto dela no "Vidas que se cruzam", conhece?

Abração!

Alyson Santos disse...

Faço minhas as palavras do Cristiano. Infelizmente nao consegui abstrair muita coisa de "Inverno da Alma" e nem essa essência que o filme tenta transparecer chegou até a mim. Só restou mesmo admirar a atuação da protagonista e ver um filme com outros quesítos tecnicos decentes, mas nada além do correto.

Abraço!

Rodrigo Mendes disse...

Excelente texto Elton.
Não poderia ter descrito o filme tal qual ele é.

O cinema americano pode e deve fazer mais filmes assim: honestos e menos corriqueiros.

Abs.
Rodrigo

Reinaldo Glioche disse...

Parabéns Eltom. Mais uma cr´tica fantástica. Muito bem escrita e que vem fazer justiça a esse belo filme que merece ser descoberto. Mais um ponto positivo a favor do Oscar ao conferir o destaque que deu a O inverno da alma. Chamo atenção também para a boa contextualização de filmes que trabalham o "espaço americano" e a relação que vc enxergou nas três atrizes, coincidentemente indicadas ao Oscar este ano. Abrilhantou esse teu belo texto.
Aquele abraço!

cleber eldridge disse...

Jennifer é a única que realmente vale apena, nesse filme que é excessivalmente lento!

Mayara Bastos disse...

Jennifer Lawrence é a alma do filme. Se não fosse por ela, o filme seria uma experiência esquecível. Sua atuação consegue causar identificação.

Beijos! ;

Elton Telles disse...

CRIS: Obrigado pelo comentário! Eu não acho que o filme tem a pretensão de humanizar e tornar aqueles personagens assustadores tão próximos do espectador, até porque a distância aqui é fundamental para que funcione o constante tom ameaçador e de imprivisibilidade que predomina "Inverno da Alma". Desconhecemos tanto aqueles personagens como Lawrence - e concordo, bela atuação -, portanto estamos diante do perigo e das surpresas assim como ela. Ree Dolly é o nosso norte.

Ah, a cena do barco me dá muita gastura, terrível aquilo, mas é questão de gosto e todos os fatores pessoais que devem ser considerados para avaliar isso e talz. Teria que analisar a concorrência, mas acho que não reclamo de nenhuma indicação do filme ao Oscar; fiquei até surpreso de ter sido lembrado em tantas categorias =)

prefiro Hawkes a Garfield, mas aí concordo com vc de que "Blue Valentine" é muito mais filme que este, mas se tinha que um sair para este entrar é "Minhas Mães e Meu Pai": o estraga-categoria! rs.

Achei "Vidas que se Cruzam" um porre hahaha, mas Lawrence já mostrava a que veio. E Kim Basinger tbm está excelente no filme ;)


ALYSON: Hummm... gostei bastante do filme. Gostei do ritmo, do suspense gradativo, achei muito bem concentrado e realizado. Merece uma outra chance, vai.


Aeee, REINALDO, valeu, cara! Fico muito feliz de ter gostado do texto e que concordamos nessa. Valeu mesmo!


CLEBER: Hummm... merece uma outra chance, vai [2]
Lawrence realmente é o maior destaque aqui.


MAYARA: Merece... [3]. Mas concordo que a atuação de Lawrence é a alma do filme. A menina tem um belo futuro a seguir no cinema ;)


ABRAÇOS A TODOS!!