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25 de mai. de 2010

Mary e Max - Uma Amizade Diferente


“Deus nos dá familiares. Graças a Deus, podemos escolher nossos amigos”. Não é por acaso que a célebre frase do escritor norte-americano Ethel Mumford é inserida antes dos créditos finais do filme, já que sua menção é totalmente plausível à história de amizade conferida nesta perversa e, ao mesmo tempo, tocante animação. Em 2004, o australiano Adam Elliot tornou-se conhecido mundialmente ao vencer o Oscar de Melhor Curta-metragem de Animação com o fabuloso “Harvie Krumpet”. O diretor foi apontado como uma das grandes promessas no campo das animações, por ser responsável pelo uso e aprimoramento de uma técnica pouco explorada até então – stop motion –, bem como por apresentar conteúdo diferenciado das animações usuais. Bastaram cinco anos para que Elliot confirmasse a que veio. Adotando a mesma técnica empregada em seu famoso curta e uma opção narrativa semelhante, o australiano dirige e roteiriza o seu primeiro longa-metragem, o encantador “Mary e Max – Uma Amizade Diferente”. Amparado na melancolia e com respaldo no humor depreciativo, surge uma emocionante e inesquecível fábula sobre a influência da verdadeira amizade na vida de duas pessoas incomuns, que raramente firmariam um laço de fidelidade se não fosse pelo método que se comunicam.


Curioso, inclusive, é saber que a história é verídica. Porém, claro, sustentada por personagens fictícios. Estamos na Austrália, em 1976. Mary é uma garota inocente e sonhadora, que, ao lado de seu galo de estimação, distribui panfletos pela vizinhança e ajuda o vizinho paraplégico com a correspondência para ganhar 50 centavos por dia. Ela economiza esse dinheiro para, futuramente, casar-se com um homem escocês de nome pré-definido e ter um rebanho de ovelhas, patos e outros animais. Do outro lado do oceano, especificamente em Nova York, vive o solitário Max. Viciado em cachorro quente de chocolate e constantemente medicado por um psiquiatra judeu, o homem de 44 anos tem dificuldades em entender as pessoas, pois considera a sociedade uma casta ilógica. Com tantas singularidades e diferenças, Mary e Max dividem, no entanto, um mesmo “problema”: nenhum deles tem amigos. Assim, quando Mary encaminha uma carta para Max perguntando-lhe de onde vêm os bebês na América, a garota logo é correspondida e o correio torna-se o canal de comunicação básico para o nascimento de uma amizade sem fronteiras.


A não ser o momento em que os protagonistas escrevem as cartas, raramente ouvimos as vozes de cada um, pois a narração em off feita pelo ator australiano Barry Humphries impera sobre a narrativa. Embora essa opção desempenhe papel importante em evidenciar os pensamentos e percepções, bem como o psicológico de cada personagem, a narração peca pelo excesso de descrição em algumas cenas, já que é perfeitamente possível o espectador chegar a uma conclusão apenas acompanhando as imagens. Porém, a sofisticação, o texto muito bem elaborado e em perfeito casamento com as imagens transformam esse grave problema, presente em tantas outras produções, em um pífio descuido. As dublagens, por outro lado, alcançam a perfeição no cuidado da composição de cada persona. O genial Philip Seymour Hoffman empresta a voz para Max. Com um timbre propositalmente rouco e sisudo, o ator é capaz de traçar o perfil completo e complexo de Max, resultando em uma mistura de fina ironia desproposital com a inocência peculiar do personagem. A pequena Bethany Whitmore dubla Mary na infância com uma voz terna e afetuosa, e suas oscilações ao dizer que nunca foi uma comunista, nem nunca voou de asa delta é perfeita para que se perceba a incompreensão, fruto da pureza típica de uma garotinha de 8 anos de idade. Já na fase adulta, a talentosa Toni Collette assume a caracterização de Mary, que ganha contornos de maturidade.





A concepção visual de “Mary e Max” é fantástica e ecoa importantes significados no entendimento da história. O mundo de Mary é mergulhado em uma cor enferrujada, predominante ocre, quase monocromático e que aposta em uma paleta de cores apagada. A Nova York de Max é composta por cores neutras, um preto e branco imperativo, que denuncia o incômodo que é para o personagem morar na Big Apple. Ao trocar as correspondências, os novos amigos também enviam presentes um ao outro – na maioria das vezes, chocolates, que, inexplicavelmente, não derretem. Esses objetos, ao adentrarem o ambiente de vivência do “presenteado”, tornam-se coloridos e ganham vida, representando o valor depositado pelo destinatário em um objeto de pouca utilidade, mas que fora enviado por um ente querido. São essas singelezas que enriquecem o filme; são detalhes que não são escancarados e detém grande importância sobre a narrativa. Ainda que a descrição do narrador sobre os personagens-título seja pontual, a complexidade de Mary e Max tem ressonância externa, como o detalhe dos olhos “cor de lama” de Mary que, ao presenciar uma cerimônia de casamento, encontram-se com lentes de contato verdes. Essas minuciosidades são informações adicionais que reforçam o que cada um efetivamente representa.


Aliás, é praticamente impossível se portar indiferente diante desses personagens. O que dizer de uma garotinha cujo “prato preferido” é leite condensado e acha que os bebês nascem em copos de cerveja? Ou de um homem de meia-idade, idealista, que frequenta semanalmente os “Comedores Anônimos” e acha que os bebês são concebidos por rabinos, freiras católicas ou prostitutas sujas? Engraçado que mesmo com o narrador constantemente evidenciando o psicológico dos personagens, eles são mais complexos do que imaginamos; e chega a ser irônico – mas verdadeiro – afirmar que são até mais “humanos” do que muitos personagens unilaterais de carne e osso em tantos filmes por aí. A própria inabilidade de Max em se considerar incapaz de entender a raça humana é uma citação extraordinária. Como diria o narrador, “Max se questionava porque era considerado doente se era mais normal que os outros”. Afinal, quem é o "problemático"? Por que as pessoas jogam lixo no chão se tem uma lixeira a cada esquina ou por que é um senso social mentir se a verdade pode ser dita a todo o momento? Da mesma forma, é delicioso e absurdamente engraçado acompanhar as irregularidades do mundo sob a ótica de Mary, como ao testemunhar a mãe roubando e achar que está pegando emprestado ou pensar que a mesma toma chá gelado todos os dias, quando, na verdade, enche a cara com um whisky vagabundo.


O tom depressivo é, geralmente, assaltado pela comicidade mórbida. “Mary e Max – Uma Amizade Diferente”, definitivamente, não é uma animação infantil. Contando com uma trilha sonora convidativa, é um filme sensível que retrata a cumplicidade entre duas pessoas que parecem ser exclusas da sociedade. Vítimas de bullying na infância e sem amigos, encontram o companheirismo e auxílio necessário um no outro, além de confirmar que a verdadeira amizade pode consertar até os erros formalmente irreparáveis. O mundo precisa de mais pessoas assim.



NOTA: 9,0



MARY E MAX – UMA AMIZADE DIFERENTE (Mary e Max) Austrália, 2009

Direção e Roteiro: Adam Elliot

Elenco: Vozes de Philip Seymour Hoffman, Bethany Whitmore, Barry Humphries, Toni Collette e Eric Bana

11 comentários:

Paulo Soares disse...

Ótima resenha Tom. Eu amei o filme. Achei brilhante mesmo!
Todo o roteiro, construção dos personagens, tudo perfeito.

Pra mim, uma obra inesquecível.

Abs!

Unknown disse...

Que texto legal, bem completo. Adorei o filme tb, em mais uma mostra que as animações deste ano estão muito boas porque também gostei de Como Treinar Seu Dragão.

ABS!

Wally disse...

Todo mundo elogiou tanto esse filme. Já passou da hora de eu procurar vê-lo.

Kamila disse...

Tô louca para conferir este filme. Só li excelente opiniões sobre ele até agora.

Anônimo disse...

Quando se trata de animações ... prefiro nem comentar, sou um lixo no assunto!

ana luiza verzola disse...

Elton dando 9,0 para um filme... Significa que, além de me identificar com animações (como você bem sabe), eu preciso ur-gen-te-men-te assisti-lo! Hahaha

Francisco Brito disse...

Um belíssimo filme que só mostra que animação não é um gênero isolado:é apenas mais uma forma de se contar uma boa história.

Parabéns pelo texto.

André disse...

Verdade, Tom! Filmão! A melhor animação que já vi ao lado do japonês "Túmulo dos Vaga-lumes".

Parabéns! Como sempre, texto impecável!

Abraço!

Elton Telles disse...

Paulo: valeu pelo comentário, friendo! É mesmo um grande filme. Apaixonante e emocionante.


Fernando: obrigado! As animações de 2009, até agora, estão sendo de qualidade. Também achei "Como Treinar Seu Dragão" um filme muito bom. Se depender das críticas "Shrek 4" vai vir aí para estragar a festa rs.


Wally, Kamilla e Cleber: super recomendado!


Ana: não sou tão ruim de nunca dar 9 para um filme, apenas não fico distribuindo notas assim, à toa rsrs. Tenho certeza de que irá adorar o filme.


Chico: Reforçando, Chico, valeu pela cópia =)
não teria assistido o filme sem a sua doação. Que bom que gostou do texto, afinal ficaria puto se não tivesse aprovado o discurso.


André: grande! Tudo certo? Valeu pela visita, meu caro. "Tumulo de Vagalumes" também é um exemplar digno de nota. Grandes filmes!


ABS!

Alan Raspante disse...

Estou lendo coisas maravilhosas sobre este filme, ele parece ser mesmo muito bom. Sua resenha apenas aguçou ainda mais a minha vontade de conferi-lo!
Abs

Amanda Aouad disse...

"Chocolates que inexplicavelmente não derretem", hehe.

É mesmo um belo filme. Eu adorei, mesmo com o que você chamou de excesso de narração.

abraços