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20 de jan. de 2011

Sentimento de Culpa


Quem nunca assistiu a um filme acompanhado de alguém que, ao término da sessão, se sentiu frustrado por não acontecer “nada”? É curioso perceber que a maioria das pessoas vai ao cinema mais com a intenção de acompanhar os desdobramentos de uma história, em vez de testemunhar um retrato da realidade, que mesmo não apresentando grandes acontecimentos ou reviravoltas mirabolantes, de alguma forma, produz algum efeito positivo – ou negativo, desconfortável, por que não? – no espectador por introduzir nas entrelinhas, de forma sutil, um assunto que desperta a reflexão. Há muitos teóricos que depositam a responsabilidade sobre Hollywood por terem usado o cinema como uma simples ferramenta para contar histórias, afirmação esta que casa perfeitamente com a do renomado cineasta francês François Truffaut, que, certa vez, disse algo semelhante à “os melhores filmes não têm os melhores roteiros”. Eu considero essa citação polêmica e oscilante, pois dependendo do meu humor, assino embaixo, mas isso varia conforme o filme, a situação, o tempo, o espaço e vários outros fatores que devem ser avaliados. No mais, discordo muito dos detratores de que Hollywood é a “culpada” por pasteurizar o cinema e reduzi-lo a meras histórias com modelo definido – começo, desenvolvimento e desfecho –, já que todo o mundo basicamente importou e progrediu com essa ideia, de uma forma ou de outra.

Enfim, sendo norte-americano ou não, é de se comemorar quando nos deparamos com um filme que foge completamente desse conceito esquemático e se preocupa mais com o clima, com o ambiente, com o momento e com os personagens, buscando uma maneira de casar esses aspectos com veracidade e fazer com que soam interessantes para o espectador. “Sentimento de Culpa” é um desses raros exemplares, tendo o seu maior mérito a negação do esforço para que tudo pareça convincente, pois tudo flui com perfeita naturalidade. Escrito pela também diretora Nicole Holofcener, a trama se baseia em duas famílias cuja única similaridade que dividem é a de morarem no mesmo prédio, em apartamentos opostos. Kate (Keener) e Alex (Platt) administram um mercado mobiliário, em que as peças antiquadas são compradas de filhos de idosos recém-falecidos. Com a intenção de ampliar os cômodos da casa, o casal praticamente risca os dias no calendário para que a senhora de 91 anos que mora ao lado, a ranzinza Andra (Guilbert), bata as botas para que eles possam comprar seu apartamento, que ela divide com a jovem neta Rebecca (Hall). Entre passeios pelo bairro com os cachorros e encontros casuais no elevador, as duas famílias ficam unidas e dessa aproximação, nasce entre eles uma modesta amizade concomitante ao tal sentimento de culpa do título.

Com certeza, esse seria mais um filme que muitos espectadores acomodados diriam que “nada” acontece. Na verdade, não há mesmo um assunto evidente que o filme pretende discutir, mas sem invadir a privacidade dos personagens, o roteiro de Holofcener consegue a proeza de contar sua eficiente história apenas retratando os momentos de conforto e os pontos de fraquezas dessas figuras – e é justamente essa irresistível dicotomia que os fazem ser pessoas tão reais. No entanto, se for para destacar “sobre” o que é “Sentimento de Culpa”, arriscaria em dizer que se trata de um belo retrato sobre a rejeição do inevitável processo de maturidade/envelhecimento e da efemeridade da existência humana.

O primeiro tema é representado pela adolescente de 15 anos Abby (Steele), que se preocupa com as acnes em forma de vulcões que pipocam em seu rosto e vislumbra com um jeans caríssimo para realçar seu corpo em formação. A irônica e malvada irmã mais velha de Rebecca, Mary (Peet, ótima), se enquadra no quesito de negar o próprio envelhecimento, já que reserva horas do seu tempo para se esticar uma cama bronzeadora a fim de se aparentar mais jovem, e quando não está fritando o corpo na máquina, prontifica-se a vigiar (e invejar) a garota mais nova pelo qual seu namorado a trocou. Também se pode incluir nesse time o pai da família, interpretado por Oliver Platt, que frequentemente tira sarro da vizinha idosa, caçoa de um homem de cabelos brancos em determinada cena e para esconder a idade que tem, decide fazer tratamentos faciais e sentir-se satisfeito com a própria aparência.



Já a questão da morte, além de Rebecca trabalhar em uma clínica onde tira radiografia de mulheres com possíveis tumores na mama – sendo o contato com casos de óbito, portanto, inevitável – a jovem ainda tem em casa uma senhora com um pé na cova por conta da saúde debilitada, que apenas aguarda o momento pelo qual todos – menos ela – estão esperando. E não poderia deixar de citar a própria questão dos móveis usados e vendidos pelo casal. É engraçado e, ao mesmo tempo, doloroso acompanhar os sintomas de arrependimento que assaltam Kate, interpretada com absoluto talento por Catherine Keener. Atuando como protagonista em todos os quatro filmes de Holofcener desde então – entre eles, os corretos “Encontro de Irmãs” e “Amigas com Dinheiro” –, Keener constrói uma personagem complexa que se revela um paradoxo em forma de gente, mesclando meiguice, solidariedade e delicadeza, já que praticamente sustenta os mendigos do seu bairro, com o egoísmo e o sarcasmo de seus comentários ácidos. Mas, assim como todos, são personagens tremendamente humanos, palpáveis, que foram muito felizes em cair nas mãos de atores competentes como os que aqui se encontram – tanto que o Independent Spirit Awards deste ano vai conceder o prêmio Robert Altman Awards de Melhor Elenco para este excelente grupo de atores. Honra merecidíssima, diga-se.

Alternando entre momentos dóceis e outros um tanto agressivos – com a fabulosa cena do jantar em “comemoração” dos 91 anos de Andra, em que todos até poderiam fazer uma vaquinha para lhe dar um caixão de presente –, “Sentimento de Culpa” é simultaneamente um filme agradável e amargo como fel, nocivo, porém com um humor negro que chega a ofender, maduro e ingênuo, e, por fim, engraçado pela argúcia, mas também emocionante graças ao seu realismo. E se um pequeno filme independente de 90 minutos conseguiu combinar tantas qualidades opostas – como a sua personagem central – e não soar forçado, no mínimo, é um filme que não deve ser ignorado.


NOTA: 8,0


SENTIMENTO DE CULPA (Please Give) EUA, 2010
Direção e Roteiro: Nicole Holofcener
Elenco: Catherine Keener, Rebecca Hall, Oliver Platt, Amanda Peet, Sarah Steele e Ann Guilbert

8 comentários:

Mayara Bastos disse...

Já faz um tempinho que queria assistir, principalmente pelo elenco. Seu texto me motivou mais em procurar o filme.

Beijos! ;)

Alyson Santos disse...

Truffaut é radical demais nessa afirmação dele, se tratando de algo tão relativo, não? Mas, quem sou eu para questioná-lo, né?! haha'

Então, como tinha falado que graças a esse texto que eu fui ter o conhecimento do filme e pelo texto sei bem o que esperar. Não se trata de um filme engraçado, mas talvez agradável para quem gosta de um bom trabalho feito, independente do humor que por vezes chega a ofensa. Só pela sua aura de originalidade, já se torna um belo aperitivo.

Abraços, Elton!

bruno knott disse...

Me pareceu extremamente interessante.

Um filme recente que tb aparentemente nada acontece é Um Lugar Qualquer, da Sofia de Coppola.

Mas esse me parece ser mais bacana. Vou conferir.

ps: deixei um selo pra vc no blog: http://intratecal.wordpress.com/2011/01/21/critica-127-horas-2010/

abraços!

Alan Raspante disse...

Oi Elton! Ah, cara, já tem um tempo que estou afim de conferir este filme: gosto do tema proposto. Se bem que,só agora tive uma ideia sobre o roteiro [não li inteiramente,pois tenho um certo receio de que pode influenciar na minha opinião...rs].

Enfim, espero ver muito em breve!
[]s

Rodrigo Mendes disse...

Seu texto está ótimo cara!

Estava mirando este filme algum tempo, mas como este ano não pude ir na Mostra de Cinema INT. de SP =//

Ah, sempre gostei da Catherine Keener e Rebecca Hall.

Gostei do seu oito para o filme.Rs!

Abs.
Rodrigo

Flávio disse...

Despertou meu interesse Tom. Parece ser um filme bem intimista.

Anônimo disse...

muito interessante

http://filme-do-dia.blogspot.com/

Elton Telles disse...

MAYARA: Fico feliz que o texto tenha aberto seu apetite pelo filme. É imperdível e o elenco é mesmo um dos principais atrativo, quiça o principal.


ALYSON: hahaha, exatamente. Eu também não concordo muito com essa do Truffaut, mas preferi não contradize-lo =D
Pelo texto, parece que vc captou bem a essência do filme, Alyson. É um filme para se sentir, não apresenta extravagâncias e é bem delicado, bem agradável.


Obrigado pelo selo, BRUNO!
Ainda não conferi o novo da Coppola, mas acho que a comparação é plausível. Se este novo for igual a "Encontros e Desencontros", é bem por aí mesmo - só que "Sentimento de Culpa" é muito melhor! =)


ALAN: hahaha, entendo. Também evito ler críticas de filmes que ainda não assisti. Mas vai na fé, tenho certeza que tu vai gostar deste! ;D


Aee, valeu, RODRIGO!
Mereceu um belo 8! Adoro Catherine Keener também e Rebecca Hall está se tornando uma atriz cada dia mais interessante. Acho que ela tem futuro promissor =)


FLAVIO: é, sim. E belíssimo!


KAHLIL: [2]


ABRAÇOS A TODOS!!