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5 de jun. de 2010

Os Inquilinos


“Cidade de Deus” é, sem dúvidas, um dos exemplares mais significativos da cinematografia brasileira. Denso e provocante, o filme de Fernando Meirelles foi um dos principais responsáveis para que os olhos do cinema mundial atentassem para o que estava sendo produzido no Brasil, país de ampla identidade cultural e vasto conhecimento, mas que ainda se encontra enferrujado para buscar histórias além da representação de determinado contexto social. Claro, as exceções provam o contrário, mas é inegável que, posteriormente à repercussão mundial de “Cidade de Deus”, deu-se início a uma onda de inúmeras produções ambientadas em favelas, cujo resultado era deficiente, pois apenas mostravam um conceito restrito, regional, em vez de discorrer sobre um tema mundial, recorrente em qualquer lugar independente de sua posição geográfica. Não faço apologia ao fim do regionalismo, nem à caracterização fiel de uma comunidade específica, mas é frustrante se deparar com um filme que desperdiça a reprodução da violência para suscitar, por exemplo, a reflexão do panorama social. Essa avalanche de filmes vazios, esquemáticos e sem alma foi pejorativamente apelidada de “favela movie”, pois é exatamente o que são, um filme “de favela” e nada mais. No entanto, vez ou outra, o mesmo ambiente é utilizado por bons cineastas como uma espécie de “roleta russa”, impondo a vulnerabilidade dos moradores do local ao percalço da violência urbana crescente. Essa é uma das abordagens que Walter Salles explora em “Linha de Passe”, Chico Teixeira também inclui algumas passagens dessa questão em “A Casa de Alice” e é o que Sergio Bianchi empresta como foco principal no seu recente longa-metragem, “Os Inquilinos”.

Escrito pelo diretor em companhia da roteirista Beatriz Bracher, “Os Inquilinos” se passa durante os atentados do PCC na capital paulista, em 2006. O filme conta a história de um casal atormentado com a chegada de três jovens suspeitos que alugam a casa vizinha à deles. Esses rapazes logo são apontados como integrantes do crime organizado, preocupando a vizinhança, que passa a se sentir ameaçada com as atitudes dos novos moradores. Preocupados com o bem-estar dos filhos pequenos, Valter (Descartes) e Iara (Carbatti) se sentem frustrados pela incapacidade de encontrar uma solução para a insegurança que dividem.


É um exercício fascinante acompanhar as alterações de comportamento do inicialmente pacífico personagem interpretado pelo ator Marat Descartes – um nome, no mínimo, curioso. Antes dos novos vizinhos, Valter é um homem passivo e tranquilo, mas logo tem o psicológico abalado com a chegada dos inquilinos, e o medo, atrelado à insegurança e curiosidade, transforma o protagonista em um homem atento, que cria métodos de defesa para qualquer acontecimento imprevisto. Ignorando a possibilidade de incluir qualquer briga ou discussão entre o casal protagonista, o roteiro é inteligente ao evidenciar os problemas matrimoniais do casal fazendo uma alusão ao pensamento involuntário de Valter, que imagina a esposa sendo assediada por um dos jovens marginais em uma clara remessa à falta de confiança que deposita em si próprio. E se antes a família dormia com as portas apenas encostadas, Valter faz questão de conferir todas as noites se as portas e janelas estão trancafiadas para impedir qualquer eventualidade – entenda-se furto. O medo da violência urbana desperta no personagem um sentimento de individualismo que lhe é inato, como pode ser comprovado pela citação “Pra que serve os muros, afinal? É cada um pro seu lado”. O ator Marat Descartes – invoquei com o nome – é hábil em externalizar todas essas diferentes nuances da personalidade de Valter.





“Os Inquilinos” invoca a discussão da cultura do medo já retratada com maestria pelo diretor austríaco Michael Haneke em “Caché”. Em ambos os filmes, a sensação de intranquilidade e o gradativo tom de tensão a cada cena dialogam e deixam o espectador inquieto às imprevisibilidades que os roteiros reservam. E é inevitável tecer comparações entre o personagem Valter e o Georges, interpretado pelo francês Daniel Auteil no filme de 2005. A passividade dos dois é substituída pela tentativa de encontrar soluções para empecilhos que os confrontam e ameaçam, mesmo que indiretamente. Durante as aulas do supletivo que frequenta, por exemplo, a timidez de Valter vai pro ralo ao ouvir o poema “A Morte do Leiteiro”, de Carlos Drummond de Andrade, em um momento decisivo do filme em que é confrontado por um aluno e o homem extravasa suas impressões sobre o infeliz episódio do pobre empregado que entregava leite na vizinhança. Na verdade, diante da injustiça narrada na estória, Walter passa a questionar as próprias convicções – e devo salientar que o casamento do diretor e atuação resulta em um momento de reflexão brilhante.

Oferecendo um satisfatório exercício de personagem, “Os Inquilinos”, por outro lado, peca pelas obviedades e acréscimos que pouco são relevantes ao filme. O personagem interpretado pelo veterano Umberto Magnani é completamente desperdiçado pelo roteiro, que sujeita o idoso a alguns dos momentos mais desfalcados do filme. O mesmo pode ser dito sobre o “mistério” de um possível pedófilo que teria estuprado e assassinado uma garota próximo ao bairro, dentre outros argumentos que não acrescentam nada à história. Irregularidades à parte, o sexto filme do diretor Sergio Bianchi entrega um ótimo retrato da inconformidade da sociedade diante das tragédias diárias. E se a situação é mesmo irreversível, como faz uma personagem do filme, só nos resta colocarmos nossa cadeira na calçada de casa e assumirmos o papel de espectadores da violência.



NOTA: 7,5



OS INQUILINOS (Idem) Brasil, 2010

Direção: Sergio Bianchi

Roteiro: Sergio Bianchi e Beatriz Bracher

Elenco: Marat Descartes, Ana Carbatti, Umberto Magnani, Ailton Graça e Cássia Kiss


12 comentários:

Cristiano Contreiras disse...

Confesso que não é o tipo de abordagem que me atrai, mas eu vi o trailer deste filme no youtube e seu texto bom me deixou mais atento a ele.

abraço

Francisco Brito disse...

Confesso que não é o tipo de abordagem que me atrai,[2]mas o texto está primoroso,como de hábito.

Sucesso!

Wally disse...

Não vi este, passou rápido demais por aqui...

Reinaldo Glioche disse...

Nossa Elton, que bema abordagem e análise do filme. Queria ter visto quando estava nos cinemas, mas não consegui. Vou deixar para conferir no Canal Brasil. Contudo, o que mais me chamou a atenção em seu texto foi o paralelo com Caché. Me instigou. Pois Caché, de fato, aborda muito bem esses aspectos de medo e violência urbana.

abs

Anônimo disse...

O circuito brasileiro continua a passar batido por mim, preciso prestar mais atenção neles.

Pedro Tavares disse...

Bianchi é um diretor louvável.Sem amarras como sempre. O filme é ótimo.

Cristiane Costa disse...

Ah, Elton, tenho que tecer mais um elogio: Que texto formidável! Tú é bom com texto,viu? A forma como você o desenvolve é perfeitamente fluída e cheia de conteúdo. AMEI isso, uma das suas melhores críticas (e olha que eu nem conheço o filme, rs). Agora tenho que conhecê-lo.

Eu acho que esta exposição da cultura do medo é muito mais genuína do que o bafafá americano sobre cultura do medo. Acaba sendo algo que esbarra no que é inato no indivíduo e o acompanha no dia a dia. E há uma certa paranóica nisso, não é mesmo? A gente tem o psicológico abalado. Eu mesma sou super desconfiada quando ando na rua à noite ou em lugares desconhecidos, vejo nitidamente que há um lance de medo e insegurança que , embora não beire a gravidade, me deixa desconfortável. Males da vida violenta e urbana.

Abs!

Karen Faccin disse...

Concordo com a sua colocação. "Os Inquilinos" transcende a favela em que está ambientado apresentando uma violencia e um medo que não moram só na favela, mas permeia as relações do dia a dia de qualquer um.

Uma coisa que não posso deixar de citar é a espécie de comparação que Bianchi estabelece entre os instintos humanos e animais. Em uma cena, em especial, o protagonista se "projeta" em seu cão de estimação, invadindo o terreno vizinho e descontando toda sua fúria, assombro e inconformismo nos inquilinos que atormentam a vida de sua família. Em uma outra cena bárbara, para se defender das ameaças que o perturbam no muro ao lado, Valter sai mijando pelos cantos do muro, como se marcasse o território.

O roteiro, muito inteligente, foge da obviedade, apresentando alguns "fiapos" que não se desenrolam ao longo da trama, como por exemplo o caso de pedofilia, que deixa um clima de suspense durante toda a projeção e, que, na minha opinião foi super válido!

Beijos, my sweetie!

Alan Raspante disse...

Até agora nenhuma resenha deste longa me deixou com tanta vontade de conferir como o seu texto, excelente mesmo!
Esse filme passou batido para mim, ele só era' mais um filme brasileiro, tentando se sobressair..', é. eu tive esse insano pensamento, fiquei com muita vontade de conferir! xD

Mateus Barbassa disse...

Ótima crítica de um ótimo filme.
Tb escrevi no meu blog sobre o filme:
http://barbassa.zip.net/arch2010-03-28_2010-04-03.html

Kamila disse...

Nossa! NUNCA tinha ouvido falar neste filme! Parece ser bem interessante. Vou correr atrás dele.

Elton Telles disse...

Cristiano: grande exemplar do cinema nacional. Vale muito a pena!


Francisco: Valeu, meu caro! Você sabe que você é parte integrante disso com as correções e os toques de gramática hahaha o/


Wally: pois é, aqui também só durou uam semana, mas Sergio Bianchi sempre me arrasta para conferir seus filmes. Um dos melhores diretores que temos no Brasil.


Reinaldo: Obrigado pelo comentário, Reinaldo. Pois é, "Os Inquilinos" bebe muito da fonte de "Caché", mas são situados em ambientes opostos. O ator Marat Descartes, em entrevista, até disse que se inspirou na insegurança do protagonista do filme de Haneke.


Cleber: faça isso. Temos grandes pérolas do cinema que passam despercebido por nós, imagina para o público externo...


Pedro T.: número, gênero e grau!


Poxa MaDame, muito obrigado pelo elogio. Fico muito grato. E saiba que a recíproca é verdadeira ;)
Concordo com o que disse e divido esse mesmo sentimento com você de andar pelas ruas sempre desconfiado, olhando para trás, certificando-se que tudo está dentro dos conformes. "Os Inquilinos" retrata isso, mas focaliza no psicológico abalado do protagonista. Lendo seu comentário, me lembrei de "Crash" e sua crítica. Não é o melhor filme do mundo, mas também funciona, de certa forma.


Karen: hummmm...linda! Perfeita a sua colocação sobre os instintos humanos e animais, me passou até batido. Tem aquela cena em que ele e o filho começam a latir para o cachorro, como se, de alguma forma, confirmassem que ainda detinham o poder sobre o pobre animal...e de que maneira? Impondo uma sensação de intranquilidade no cÃo. Demais! São essas sutilezas que tornam o filme ainda mais rico, e não os "fiapos" que você mesma apresentou ;)


Alan: hahahaha, acontece! Vários filmes eu também não esperava nada, deixar passar, mas depois quebrei a cara. Muito obrigado pelo seu comentário, meu caro ;)


Olá Mateus, valeu pela visita e pelo seu comentário =)


Kamila, a previsão para chegar nas locadoras, se não me engano, é agosto. Recomendadíssimo!


ABS A TODOS!